Taluah andou sem rumo, olhando as paredes que ainda tinham espaço na sua quebrada. Não queria realmente pintar nada, apenas se afastar de casa. Sua mochila estava estranhamente pesada, e estava deixando ela cansada na subida íngreme. Passando pela rua onde havia feito sua arte mais cedo, parou para ver o porquê do peso, e encontrou o livro que havia levado consigo na mochila. Dogma e ritual da alta magia, de um tal de Eliphas Levi. O livro parecia ter sido impresso há muito tempo, e a linguagem era ainda mais velha. Se ela tivesse olhado a folha de créditos, veria que o texto original datava do século XIX. Mas Taluah nunca havia dado importância para esse tipo de informação, apenas se sentou na calçada, embaixo do poste, e folheou o livro novamente.
O livro misturava coisas que pareciam ter saído da bíblia abraâmica cristã com coisas esotéricas malucas, como astrologia e tarô. Tudo temperado com letras que deveria ser hebraico antigo. Nada ali fazia muito sentido, mas um símbolo pareceu familiar: Uma estrela de seis pontas feita com dois triângulos vazados se cruzando. Ela olhou para frente, para sua arte, e viu lá, o mesmo desenho, como proposto pelo homem fumante. Porque ela não havia perguntado o nome dele, ela ainda se perguntava. Folheando mais um pouco o livro, viu outros símbolos do livro na sua pintura. Percebeu que aquele trabalho era claramente esotérico, e ela não entendia nenhum significado. Começou a olhar com mais atenção, tentando entender o que estava escrito no livro e o que aqueles símbolos significavam, mas a linguagem antiquada deixava tudo muito complicado. Se concentrou ao máximo, lendo e relendo palavra por palavra, olhando para o livro e para a parede, até que ouviu uma voz falando em seu ouvido.
—Latorun saye, Agbara atife beni Axé! — Era uma voz masculina, grave, sepulcral. Tinha uma entonação de ordem, que fez Taluah se levantar num pulo, arrepiada até o último cabelo do corpo.
Quando a jovem percebeu, não estava na rua, sentada na calçada. Estava num espaço negro, vazio, infinito para todos os lados. Uma nuvem se moveu acima dela, mostrando uma lua cheia enorme, muito maior do que ela jamais havia visto. A luz da lua revelou uma planície, grama baixa até onde a vista da jovem alcançava, e ela estava exatamente no meio de uma encruzilhada. Olhando ao redor, percebeu uma coisa ainda mais fora do comum: apesar da lua cheia, ela tinha duas sombras saindo de seus pés, projetadas no chão. Uma delas, estava inclinada corretamente em relação a luz do luar, mas a outra se destacava como se uma luz forte a acertasse por trás. Essa segunda sombra era estranha, mais alongada, como se pertencesse a outra pessoa, alguém alto, provavelmente um homem forte, com ombros largos e sem cabelos. Taluah se concentrou na sombra, achando que ela tinha volume demais, e a sombra abriu um par de olhos e um sorriso enorme, com dentes brancos.
—Seja bem vinda ratinha. — A sombra falou sorrindo, com aquela mesma voz cavernosa. —Obrigado por me dar forma, minha pequena jovem.
Taluah apenas deu um susto para trás, assustada. Caiu no chão sentada, e viu que a sombra continuava no mesmo lugar, desgrudada dela. Percebeu também que estava nua, por algum motivo, ao sentir as pedras do chão de terra em sua bunda. Se levantou cobrindo os seios e a virilha, muito envergonhada apesar de tecnicamente estar sozinha.
—Ah, os povos modernos. Sempre com pressa. Sempre envergonhados. — Riu a sombra, ganhando volume, como se se erguesse da terra. Quando voltou a falar, era ser humano negro como ebano, sem cabelos ou traços sexuais. Tinha ombros muito largos, peitoral e abdômen com músculos definidos, sem mamilos ou umbigo. Sua cintura era fina, e crescia em um quadril largo, sem nenhum órgão sexual entre as coxas roliças. —Sabia que roupas são uma coisa muito recente na nossa história? Até pouco mais de quinhentos anos atrás, nossos corpos só eram cobertos por motivos de cerimônia ou proteção. No dia a dia ninguém vestiria uma roupa.
—É, mas eu não estou em mil seiscentos e minha bisavó de biquíni, cadê minhas roupas? — Taluah perguntou, extremamente envergonhada de sua nudez.
—Que tal isso? — A sombra propôs, e com um estalo de dedos, Taluah estava vestida com roupas típicas de alguma comunidade afastada no meio do continente africano. Basicamente uma toga de tecido vermelho, que tampava o seio direito e deixava o esquerdo exposto, acinturada com uma trança de capim seco. Em seu pescoço havia um adorno de folhas de palmeira seca, que tampava seus ombros e uma parte do busto como um sobrepeliz curto. Não havia calçado ou roupa íntima, de forma que tampava muito pouco do que Taluah queria esconder.
—Olha, não quero ser ingrata, sem dúvida é melhor, mas não têm ao menos um sutiã? Só minha mãe viu meu mamilo até hoje, não estou confortável com ele de fora assim. — Taluah pediu, ainda tampando o peito com uma mão, e segurando a fenda lateral da roupa com a outra.
—Crie então sua roupa, minha cara. — O ser esticou a mão, como se passasse a vez. — Como gostaria de estar vestida?
—Bom, roupas íntimas seriam um bom começo, sabe? Aquelas de elastano sem costura, bem confortáveis. Talvez uma roupa estilosa, como uma saiona plissada com uma leggin pôr baixo, uma camiseta curta mostrando meu umbigo e um casacão foda pôr cima, daqueles bem de cria.— A medida que Taluah descrevia as roupas, elas apareceram em seu corpo, sem estardalhaço, sem barulho ou luzes. Apenas lá estavam.O calçado era um tênis com uma roda grande atrás, como um skatenis profissional, caso existisse algo assim. — Ai sim, agora eu to no estilo! Olha esse pisante!
—Fico contente que finalmente esteja do seu agrado. — A sombra falou, sorrindo. Ele se sentou no ar, como se estivesse numa cadeira confortável. —Bom, agora aos negócios.
—Boa, onde é que eu to? — Taluah perguntou, refreando a vontade de perguntar se estava na lagoinha.
—Estamos na sua mente. Estamos no astral. Estamos em Aruanda. — A sombra respondeu. — Os brancos poderiam até dizer que estamos no inferno, mas isso é loucura deles.
—Ok, eu acho. — Taluah olhou novamente ao redor. Parecia tudo calmo e silencioso demais pra ser o inferno como os pastores da televisão pregavam. E fresco demais, com certeza.
—Eu estava esquecido. Abandonado, junto com tantos outros d’África. — A sombra comentou. — Arrastaram nosso povo para o outro lado do oceano, condenaram nossas crenças e acorrentaram nossas vontade. Mas graças a você, agora alguém se lembra. Agora posso voltar a ser. Obrigado.
—De nada, eu acho. —A jovem não tinha certeza do que havia feito, mas um lampejo de clareza cruzou sua mente: aquela sombra é a persona que havia desenhado no muro.— Qual seu nome mesmo? Tenho que parar de esquecer de perguntar.
—Já fui conhecido por muitos nomes em muitos lugares, mas você pode pegar o misto deles. Pode me chamar de Lonan, a nuvem passageira. — A sombra comentou. Ao falar esse nome, seu rosto se tornou ligeiramente mais claro, passando do betume com olhos e dentes para uma feição humana, ainda que tão negra quanto a pele humana pode ser. Parecia ligeiramente mais masculino agora, complementando a voz.
—Lonan. Porque será que seu nome me parece familiar? — Taluah comentou, como se mastigasse o nome. — Afinal, o que é você?
—Eu sou o que sou. Em algum momento, fui um santo. Antes, era considerado um orixá. Já fui apenas parte da natureza. Hoje, talvez eu seja considerado uma tulpa. — Lonan comentou, pensativo. — Sem dúvida, os falsos pastores de hoje me chamariam de diabo, demônio ou qualquer coisa similar. No fim das contas, esses nomes não fazem diferença, eu sou o que sou.
—Tá bom, vou fingir que isso responde minha pergunta. — Taluah respondeu, não tendo entendido ao certo o que ele queria dizer, mas percebendo que não era relevante. Ele era algo sobrenatural, e aparentemente se sentia grato a ela, então estava tudo bem. Por hora, ao menos. —Mas porque eu estou aqui? Quer alguma coisa de mim além de agradecer?
—Agradecer, principalmente. —Lonan respondeu. — E oferecer minha ajuda. Sinto que você tem uma longa jornada pela frente, e eu não posso fazer menos do que lhe auxiliar. Claro, seu gosto em deixar mensagens e desenhos nas paredes pode me trazer benefícios, mas isso seria só uma mão lavando a outra.
—Não estou entendendo tudo, mas pelo visto gostou que eu te desenhei na parede? — Taluah resumiu suas duvidas. — Posso fazer mais isso, eu queria mesmo ter uma persona pra usar além da minha tag.
—Persona. Ta ai um termo que se aplica, mas nunca foi usado para me descrever. — Lonan comentou, como se degustasse a palavra na boca. Como se a palavra persona fosse uma comida e ele estivesse mastigando suas letras e silabas. — Muito bem, gostei disso. — Ele se levantou, e agora seu corpo tinha uma calça social vermelha bem alinhada, segurada com um suspensório branco. Em sua mão surgiu um cachimbo, e ele tirou um trago sem acender o mesmo, mas o miolo brilhou vermelho e Lonan soltou fumaça mesmo assim. O cheiro era o mesmo do cachimbo do dono daquela casa: chocolate, tabaco, ervas de fazer chá. —Acho bom, acho muito bom. Quando precisar dos meus poderes, me chame. Basta falar “Lonan, wa ran mi lọwọ!”